A realidade da exclusão digital no ensino médio

Conheça projetos que ajudam a preencher lacunas deixadas pelo poder público

Na semana passada, em uma reportagem exclusiva no site isacolli.com, mostramos os efeitos da exclusão digital na vida dos alunos e educadores do ensino fundamental (leia neste link). Esta semana, nosso olhar é para o ensino médio. Ouvimos alguns professores para entender como esses estudantes estão sendo afetados pelas mudanças na educação provocadas pela pandemia e o que está sendo feito para suprir essa defasagem.

Tatiana Nunes, professora de Língua Portuguesa e Redação, afirma que a exclusão digital na pandemia é uma realidade. “São alunos que ficaram totalmente de fora do processo escolar ou porque a escola não tem a estrutura capaz de abraçar esses meninos e meninas ou porque esses estudantes não têm acesso à internet paga. A questão da pandemia, na realidade, tornou mais evidente e agravou a desigualdade que já existia entre o público e o particular”, avalia.

Para a educadora, essa defasagem vai se espelhar nas provas únicas, que tanto alunos da rede pública como da privada têm de fazer, como o Enem.

Ela ressalta que algumas instituições públicas como CAP da UFRJ, o Colégio Pedro II e o Militar possuem estrutura e condições de recuperar as perdas no ensino neste período pandêmico, mas não é a realidade da escola pública em geral. “A gente vai ter um cenário construído em cima de alunos que estarão preparados porque tiveram todo amparo tecnológico e alunos que não estarão preparados, que já estariam em situação mais comprometida em condições normais, e ainda mais agora”, lamenta.

Tatiana destaca que as perdas decorrentes da pandemia podem atingir também os alunos que tiveram acesso à tecnologia. “O fato de você ter acesso à internet para garantir esse ensino não significa que o aprendizado foi eficaz. Tem aluno da escola particular que não conseguiu assimilar tudo que deveria ter aprendido. Essa defasagem vai existir também apesar do acesso”, alerta.

“Nós, profissionais, tivemos de nos adaptar a uma nova realidade e não necessariamente os alunos conseguiram acompanhar. Então, temos esse outro grupo, que não é pequeno, que está defasado e vai colher as consequências desse ensino remoto, que foi bastante conturbado. Numa visão geral, o ensino remoto atendeu plenamente a uma faixa pequena, que não tem a ver com classe social ou oportunidade. Tem a ver com adaptação daquele aluno a essa forma de ensino”, afirma.

Como recuperar a defasagem

Tatiana diz que o maior desafio para os educadores neste momento é recuperar a defasagem. Seja no ensino público ou privado, diz ela, o ideal é que a escola crie um contraturno que dê conta dessa carência. “Tem que ter envolvimento que desperte a vontade desses alunos quererem estar lá, entender que ele está com essa defasagem. O ideal é oferecer atividades diferenciadas com recursos como plataformas gameficadas e conteúdos lúdicos para trabalhar aspectos de aprendizagem que ficaram para trás nesses dois anos de pandemia”, aponta.

E acrescenta: “com relação à rede pública, o que me preocupa é que muitas escolas não terão condições e recursos para isso”.

Caminhos possíveis

Otimista, Tatiana acredita que um caminho possível para ajudar as escolas públicas sem recursos são as parcerias com as da rede particular. “Hoje já existem muitas escolas que dão bolsas de 100% para alunos carentes, mas não contemplam um número razoável. Então, uma possibilidade seria oferecer monitoria com alunos de escolas particulares ajudando a escola pública”, opina.

Para a professora, também é essencial que o poder público faça o que lhe cabe neste momento. “Deveria haver mais concursos, professores contratados temporariamente, ao menos. A situação de defasagem na pandemia não é nada promissora e é preciso agir agora”, enfatiza.

Voluntários dão o exemplo

Tatiana afirma que essa inquietação é comum a muitos educadores e diz que são inúmeros os exemplos de profissionais que dedicam parte do seu tempo livre aos trabalhos voluntários com alunos da rede pública. Ela cita como exemplo o projeto Enem 360, uma plataforma no Youtube com conteúdos do ensino médio, criada pelos professores de Geografia Léo Paschoal e Diego Moreira. Tatiana colaborou fazendo os vídeos de Português. “A vantagem é que vai para o Brasil inteiro”, observa.

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Tatiana fez vídeos com aulas de redação para o projeto Enem 360

Diego e Léo nos contaram que a preocupação com essa exclusão digital foi determinante para dar vida ao projeto.

Diego lembra que os dois primeiros anos da pandemia tiveram um impacto muito grande na educação. “Muitas pessoas passaram meses sem nenhum acesso às escolas, aulas e professores. Outras, mais cedo ou mais tarde, tiveram acesso ao ensino remoto, mas nós vimos no cotidiano escolar e nas avaliações que os resultados do processo de ensino-aprendizagem foram muito insatisfatórios. Penso que para recuperar isso será necessário diagnosticar as defasagens e promover estratégias de resgate dos elementos essenciais do currículo, preferencialmente de forma lúdica, interativa e criativa”, pontuou.

Léo comenta que a defasagem das escolas públicas é muito grande, diferentemente do que aconteceu nas escolas particulares, que tinham recursos para oferecer aulas de qualidade em um cenário pandêmico. “Essa defasagem vai perdurar por uns quatro, cinco anos, ao contrário do que acontece no ensino privado. A pandemia veio para agravar essa diferença de acesso ao ensino”, afirmou.

O início de tudo

Diego explicou que, logo nas primeiras semanas de pandemia, ele e Léo perceberam que havia um abismo social que se refletiria no Exame Nacional do Ensino Médio. “Algumas escolas, especialmente as privadas, puderam promover aulas remotas mantendo a grade horária integralmente, enquanto muitos estudantes ficaram sem nada, inclusive interrompendo a preparação para o ENEM. Foi por isso que decidimos criar o canal ENEM 360 no YouTube e oferecer aulas gratuitas de todas as matérias para todo o Brasil, além de notícias sobre o ENEM e mentorias para otimizar o estudo. A pessoa só precisa de um dispositivo e de internet para acessar. Os vídeos são curtos, objetivos e de fundo preto, para economizar internet e energia”, diz.

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Léo Paschoal criou o Enem 360 junto com Diego Moreira

Léo acrescentou alguns detalhes: “a gente chamou professores para trabalhar com a gente, contratou uma produtora e o principal objetivo era oferecer acessibilidade a um ensino virtual de qualidade para o máximo de pessoas possível. Chegamos a 800 inscritos no canal. Oferecemos conteúdo acessível, prático para o aluno que tem dificuldade de acesso à internet, com vídeos curtos de 7 a 12 minutos. Era bem objetivo… a gente selecionava as principais questões do Enem nos últimos cinco anos, incluindo redação, com possíveis temas e desenvolvia conteúdo ao longo dos vídeos, seguindo a carga de acordo com o conteúdo que é cobrado no Enem”.

Para Léo, práticas como essa – de oferecer material de qualidade que seja acessível – são fundamentais: “essa é a parcela de contribuição que a sociedade civil pode oferecer”.

“Acreditamos que iniciativas de voluntariado como a nossa ajudam a atenuar essa desigualdade”, completou Diego.

Escola de samba e de ensino

Entre batuques, gingados e muita descontração, as escolas de samba também dão exemplo quando o assunto é educação. Várias delas oferecem projetos socioculturais, disponibilizando espaço nas suas quadras para o trabalho de voluntários. Um exemplo é a Portela. O professor da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, Luiz Espírito Santo, coordenou durante anos o curso pré-vestibular da ‘Azul e Branco de Madureira’.

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Luiz Espírito Santo com os alunos do projeto de pré-vestibular da Portela

Luiz conta que, desde 2002, atua voluntariamente em pré-vestibulares sociais, antigamente chamados de comunitários.

“Dei aulas no Pré-vestibular Humanista, no Instituto Educarte, na Educafro; no Círculo Laranja (Sindicato da COMLURB); no Sind-UERJ; Fundação Gol de Letra; Rede Emancipa e na minha Portela. Nesses vinte anos, atuei voluntariamente como professor e coordenador pedagógico em várias dessas ações. Atuo também como professor voluntário no projeto ‘Adote um Aluno’, que atende a estudantes com baixa renda em praças do Rio de Janeiro, oferecendo a eles aulas particulares gratuitas”, afirmou.

Luiz diz que tem muita experiência e ativismo nesse sentido, gosta do que faz, mas sabe que o voluntariado não deve ser romantizado.

“Se mergulho de cabeça em ações desse tipo é porque falhamos enquanto sociedade. Pensando esta de forma tripartite, eu represento a Sociedade Civil. Enquanto cidadão, eu cumpro meu papel solidário por ter uma profunda empatia. Eu já fui um jovem empobrecido e que passou muitas dificuldades para conseguir estudar. Nesse sentido, eu me empenho para ajudar o máximo possível de pessoas para que elas acessem a recursos maiores e melhores que os possibilitaria a mim no passado para que conquistem seu lugar ao Sol”, continua.

O professor diz, no entanto, que nunca perde de vista que uma das outras pontas da citada divisão tripartite da sociedade falhou e continua a falhar reiteradamente: o Estado. “Se houvesse investimentos adequados e alocados com vistas a garantir equidade social, racial e espacial/geográfica em nosso país, possivelmente muitas das iniciativas voluntárias que eu e tantas pessoas realizam não seriam demandadas”, opina o educador.

Resultados na pandemia

Luiz diz que, durante a pandemia, o pré-vestibular da Portela conseguiu aprovar muita gente para as universidades: “para se ter uma ideia, tivemos quatro aprovações somando os anos de 2018-2019. De 2020 para cá, somamos quase 20 aprovações, a última delas de uma senhora com quase 60 anos”.

O educador elaborou um planejamento para otimizar os parcos recursos que tinham, sobretudo porque a imensa maioria dos alunos tinha enorme dificuldade de acesso à internet. “Passamos a ter aulas remotas por uma plataforma de ensino à distância parceira de segunda à sexta com baixo gasto de dados móveis. Aulas de redação aos sábados com outras duas parcerias e eu enviava semanalmente simulados com questões de vestibulares anteriores para as turmas, liberando vídeos-gabaritos, elaborados por alguns dos melhores professores do Rio de Janeiro que eu convidava a nos ajudar e que aceitavam por conta de nossa amizade e pela honra de contribuir com a Portela”, relatou.

Para Luiz, “enquanto não construirmos uma sociedade verdadeiramente democrática, solidária e equânime, totalmente espelhada no Estado que a administra e organiza, ações voluntárias como as empreendidas pela Portela serão imprescindíveis”.

Motivado a transformar vidas

Roterdan Borges, que hoje cursa licenciatura na UERJ, estudou todo ensino fundamental em escola pública. No ensino médio, conseguiu uma bolsa de estudos no colégio Mopi, na Tijuca, Zona Norte do Rio. A oportunidade o deixou feliz, mas ao mesmo tempo inconformado por deixar os colegas da antiga escola. Essa inquietação o levou ao voluntariado.

“Quando cheguei no Mopi, me deparei com uma realidade totalmente diferente daquilo que tinha passado grande parte da minha vida na escola pública e não apenas na parte acadêmica, mas na forma como as pessoas enxergam a vida. Eu tinha uma professora de Filosofia e comecei a chorar na sua terceira aula. Ela perguntou porque eu chorava e eu disse que sentia culpa porque estava tendo oportunidade de ter aquele ensino de excelente qualidade, enquanto meus amigos que ficaram na escola pública não estavam tendo. E ela disse que eu não tinha culpa, que a culpa era do sistema”, lembrou.

Roterdan conta que a professora disse que se ele teve a oportunidade, que a agarrasse com todas as forças para voltar lá na antiga escola para buscar os colegas.

“Eu fiquei com isso sempre na minha cabeça e pensando em como poderia retribuir. Fiquei com uma sensação de vazio e impotência e quando fui ficando mais maduro, no 2º ano do ensino médio, me tornei presidente do Grêmio Estudantil. Cheguei para o diretor da escola e fiz uma proposta: aqui do lado tem um colégio público muito bom – o Orsina da Fonseca. E se a gente estender os projetos da escola para essas pessoas? Integração, reforço escolar, ciências… e eles aceitaram”, relatou.

Guinada no projeto

Inicialmente, o projeto era quase que como uma via em mão única: a escola particular ajudando os alunos da escola pública. Roterdan não estava satisfeito com esse modelo. Para ele, o foco tinha que ser a troca de idéias. “O que os alunos da rede privada, privilegiados, poderiam oferecer aos alunos da rede pública era tão grande, na mesma proporção do que os alunos da rede pública poderiam oferecer aos da rede privada. Porque enquanto um dá infraestrutura, o outro dá bagagem cultural, experiência de vida…”, contou.

A diretoria topou a mudança de rumos. “Aí o projeto andou. A gente fazia oficinas, eu ia de sala em sala, criava atividades de incentivo à leitura”, acrescentou.

Percebi que estávamos no caminho certo: “Nós bolsistas, inquietados com a não oportunidade dos nossos amigos, estávamos fazendo, de alguma forma, com que eles desfrutassem um pouco da nossa realidade. Só que depois veio a pandemia, que mudou totalmente o rumo do projeto. Todo contato presencial que estava sendo construído caiu por terra”, lamentou o jovem.

Novos dilemas

Roterdan explicou que, com a chegada da pandemia, os alunos passaram a lidar com novas questões emocionais: “você já vive com a falta constante de alguma coisa: alimento, dinheiro, afeto, ensino e, agora, com a pandemia, vive permanentemente com a ameaça à saúde… não sabemos o que vai acontecer. A sanidade mental afetou a todos, principalmente os mais carentes”, refletiu.

Roterdan desanimou por um momento, mas não desistiu. Sabia que a falta de acesso à tecnologia seria um obstáculo, no entanto, não o impediria de seguir adiante.

“A gente criou, então, um projeto no Instagram com posts de matérias como química, biologia e outras que a gente acreditava ser importantes para o Enem. Criamos flashs em vídeos rápidos para o aluno acessar quando tivesse um wi-fi disponível. O pouquinho que a gente fez já mudou a vida de muita gente ali”, afirmou.

Omissão do Estado

O jovem solidário vai usando a criatividade para driblar os desafios que aparecem. Faz a sua parte, consciente de que a responsabilidade maior não lhe cabe. “Nós, como sociedade civil, podemos fazer muita coisa, mas acredito que nada supera o fato de que o Estado é o principal agente transformador social. Só tem como resolver esse problema nas suas profundezas, na sua raiz, de forma estrutural, o próprio Estado. Nós, como agentes transformadores, temos um papel importantíssimo, fundamental, mas nossas mãos são curtinhas em relação ao poder público. Enquanto temos nossas mãos curtinhas, fazemos tanto e o Estado que tem uma mão elástica não faz o seu papel direito”, conclui Roterdan.

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